quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Por que um Setembro Amarelo na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo?

Entrar em uma universidade pública, considerada de excelência, para muitas e muitos estudantes é a realização de um grande e custoso sonho e a expectativa do início de um futuro promissor. Tornar-se docente na USP é um ponto alto de uma longa trajetória formativa e também o ponto de partida para construir uma carreira de professor/a e pesquisador/a, dedicando-se à academia e a produção e circulação de conhecimento. Ser uma ou um funcionária/o concursada/o, nesses tempos de precarização do trabalho e incertezas política e econômica, é a esperança de estabilidade profissional e da possibilidade de um projeto de vida. E, não obstante, nós das três categorias - estudantes, docentes e funcionárias/os técnico-administrativos - estamos adoecendo.

Nos últimos anos, há uma profusão de notícias na imprensa reportando o aumento (ou a maior percepção) de quadros de transtornos de pânico e ansiedade, depressão, abuso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, e suicídios entre estudantes universitárias/os mundo afora. Na academia, este assunto tem sido pautado sobretudo pelas escolas de Ciências Biomédicas que, conduzindo estudos entre seu próprio corpo discente, têm encontrado índices preocupantes de diferentes manifestações de sofrimento mental. A despeito da maior visibilidade dos casos nas escolas consideradas "de elite" na Universidade de São Paulo, um censo sobre o corpo discente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas realizado em 2016 constatou que um terço dos estudantes sentem seu desempenho acadêmico comprometido por questões de sofrimento mental, ansiedade, pânico e depressão. Só em 2018, há notícia de dois casos de suicídio entre estudantes da graduação da faculdade.

Diversas causas têm sido apontadas para o surgimento e agravamento dos quadros de sofrimento mental entre a comunidade acadêmica. Entre os estudantes, indica-se como principais fatores de risco a saída de contextos familiares para estudar em um local distante, a dificuldade em acompanhar a carga de estudos e avaliações, os questionamentos vocacionais e profissionais, a dificuldade de conciliar trabalho e estudos, a vivência de episódios de machismo, racismo e LGBTfobia dentro e fora dos espaços universitários, a violência sexual, a utilização desmedida de psicoativos para estudar e/ou de forma recreativa, o sentimento de isolamento e inadequação às exigências acadêmicas e institucionais da universidade.

Entre os estudantes de pós-graduação, há também as pressões de prazos para produção das dissertações e teses que não necessariamente abrangem o tempo orgânico dos diferentes temas de pesquisa, os bloqueios de escrita, as dificuldades de relacionamento com orientadores e grupos de pesquisa, a insuficiência de bolsas que permitiram dedicação integral à pós-graduação e a cobrança da produtividade.

Este é também um dos principais fatores de adoecimento das/os docentes, premidos pela necessidade de conduzir grupos de pesquisa e orientação, lecionar na graduação e na pós, assumir cargos de gestão e publicar produções originais, em um ambiente em que a competitividade e o produtivismo em muitos casos desestimulam a convivência harmoniosa entre pares. As condições profissionais em franca deterioração na USP, com os sucessivos programas de demissão voluntária e o consequente acúmulo de tarefas nas mãos dos funcionários, agravam este cenário.

Institucionalmente, as questões de saúde mental da comunidade acadêmica têm sido pouco enfrentadas e os equipamentos de acolhimento e atenção à saúde estão em franco desmonte. O Hospital Universitário, que dispõe de atendimento psiquiátrico ambulatorial, sofreu um enorme impacto com demissões a partir de 2014. Em 2017, o pronto-socorro infantil foi fechado e o pronto-socorro adulto passou a atender apenas emergências. O déficit de médicos tornou muito difícil a marcação de consultas, aumentando a vulnerabilidade da comunidade dentro e fora dos muros da USP. O Instituto de Psicologia  tem oferecido atendimentos emergenciais e grupos para o acolhimento, porém algumas dessas iniciativas estão em vias de fechar ou foram paralisadas. Além disso, professoras e professores, funcionárias e funcionários, a equipe de segurança do campus e a assistência social carecem de mais informação e capacitação para lidar com pessoas em sofrimento psíquico e episódios em que a manifestação desse sofrimento emerge e exige algum tipo de cuidado.

E, apesar da depressão e suicídio na vida acadêmica terem se tornado tema recorrente de reportagens e estudos, há ainda muito estigma e silenciamento acerca dessas questões. Sem diálogo, tornam-se problemas individualizados, desconectados dos contextos que os causam e enfrentados de forma precária por quem já está mais vulnerabilizado.

Em resumo, diante da profusão de fatores de risco para o sofrimento mental, é preciso ampliar os fatores de proteção existentes, identificando e suprindo suas lacunas e, criativamente, encontrando boas práticas de acolhimento, cuidado e bem-viver dentro da universidade.

Esta é a proposta do Setembro Amarelo FFLCH 2018 - ampliado e estendido. A partir de uma iniciativa do Coletivo Neurodivergente Nise da Silveira - CONEU, membros da comunidade da FFLCH se reuniram para pensar uma programação extensa, capaz de nos trazer esclarecimentos e subsídios para ações perenes em nossa faculdade. Ao longo de várias semanas, receberemos profissionais de saúde mental, pesquisadores, membros de nossa comunidade e oficineiras/os para examinar e debater os muitos aspectos do sofrimento psíquico contemporâneo, experimentando iniciativas diversas que possam prover as ferramentas necessárias para enfrentá-lo no âmbito de nossa Faculdade.

Após demasiado tempo tapando o sol com a peneira, é hora de fazermos os laços do Setembro Amarelo trazerem esclarecimento e revigoramento de nossas relações.