quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Algumas palavras de agradecimento do Setembro Amarelo FFLCH 2018

Hoje, 10 de outubro, é o Dia Mundial da Saúde Mental. Em razão dessa data é que nós, da Comissão Organizadora do Setembro Amarelo FFLCH 2018, optamos por fazer transbordar o período do setembro amarelo, tornando-o - nas nossas formulações iniciais - ampliado e expandido, tratando não apenas da compreensão e prevenção do suicídio, mas também de questões mais amplas relacionadas à saúde mental e sofrimento psíquico.

Ao longo das últimas semanas, realizamos 3 palestras, 5 mesas redondas, 11 oficinas e atividades culturais. Tivemos como público a comunidade acadêmica de nossa Escola - estudantes, professoras e professores, funcionárias e funcionários -, mas também pessoas de outras unidades da USP assim como gente da comunidade mais ampla, também interessada e tocada pelo tema, buscando informações, buscando diálogo, buscando compartilhar experiências, angústias e alternativas para o cuidado de si e de outrem.

Entretanto, nosso maior sucesso, nesse evento, não pode ser quantificado pelo número de atividades ou do público. Acreditamos que conseguimos sensibilizar os responsáveis em diferentes instâncias da Universidade de São Paulo para a importância do tema da saúde mental, que não pode ser meramente ignorado ou delegado para esferas externas à universidade. Somos nós, é assunto nosso. E podemos lidar com este assunto de múltiplas maneiras, por dentro da instituição ou ao seu lado, em pequenos grupos ou em grandes programas. Cada apoio é decisivo. Porque o que não podemos mais é fingirmos que nada está acontecendo, responsabilizarmos individualmente quem sofre ou acusá-los de trazer dificuldades anteriores que nada teriam a ver com a universidade. Não podemos mais nos desumanizar.

Acreditamos que começamos a conscientizar nossa comunidade que ansiedade, depressão, pânico e outras manifestações de sofrimento, bem como as dificuldades decorrentes para o desempenho das atividades universitárias, não são apenas questões individuais, faltas e culpas pessoais; não são fraqueza ou insuficiência. Pois debatemos os muitos dispositivos que exigem um disciplinamento, normalização e produtivismo de nossos corpos e subjetividades que é incompatível com nossas vidas. Esclarecemos sobre os pressupostos elitistas e românticos que ainda regem o que é um ou uma estudante, funcionário(a) e professor(a) ideais, pressupostos que arriscam tirar as nossas ferramentas únicas, referentes à cada vida e trajetória, para encontrarmos a alegria em nossas atividades e nossas interações dentro e fora da universidade. Dialogamos sobre como nossas vulnerabilidades, nossas aberturas para o mundo, podem nos dar pistas de como também nos responsabilizarmos pelos efeitos que causamos em nós mesmos e pelos outros, sem sermos paralisados pela chave da culpa, e sim engajando-nos no desenvolvimento de relações éticas.

O Setembro Amarelo FFLCH 2018 terá ainda muitos desdobramentos, muitas voltas do lacinho amarelo que nos simboliza, nos une e abraça a nossa Escola. Temos o projeto de realizarmos uma cartilha que possa ser utilizada por toda a comunidade, com informações úteis para lidar com o tema da saúde mental. Buscaremos recursos para a realização de um Censo de Saúde Mental na FFLCH, para termos um diagnóstico mais preciso da nossa situação e pensar nas estratégias de enfrentamento daqui para frente. O Coletivo Neurodivergente Nise da Silveira, auto-organizado por estudantes, permanece como um espaço de acolhimento. Lutaremos para que os diferentes programas de acolhimento da USP não sejam extintos, e sim ampliados, e lutaremos para que os recursos para isso sejam garantidos. A vida e a política continuam.

Por fim, gostaríamos de agradecer a todas e todos que ajudaram a construir este evento. Que possa ter sido a demonstração da potência de vida que todas e todos temos consigo e que possa inspirar e energizar para os próximos desafios e para uma universidade mais pautada pelo bem viver.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Por que um Setembro Amarelo na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo?

Entrar em uma universidade pública, considerada de excelência, para muitas e muitos estudantes é a realização de um grande e custoso sonho e a expectativa do início de um futuro promissor. Tornar-se docente na USP é um ponto alto de uma longa trajetória formativa e também o ponto de partida para construir uma carreira de professor/a e pesquisador/a, dedicando-se à academia e a produção e circulação de conhecimento. Ser uma ou um funcionária/o concursada/o, nesses tempos de precarização do trabalho e incertezas política e econômica, é a esperança de estabilidade profissional e da possibilidade de um projeto de vida. E, não obstante, nós das três categorias - estudantes, docentes e funcionárias/os técnico-administrativos - estamos adoecendo.

Nos últimos anos, há uma profusão de notícias na imprensa reportando o aumento (ou a maior percepção) de quadros de transtornos de pânico e ansiedade, depressão, abuso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, e suicídios entre estudantes universitárias/os mundo afora. Na academia, este assunto tem sido pautado sobretudo pelas escolas de Ciências Biomédicas que, conduzindo estudos entre seu próprio corpo discente, têm encontrado índices preocupantes de diferentes manifestações de sofrimento mental. A despeito da maior visibilidade dos casos nas escolas consideradas "de elite" na Universidade de São Paulo, um censo sobre o corpo discente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas realizado em 2016 constatou que um terço dos estudantes sentem seu desempenho acadêmico comprometido por questões de sofrimento mental, ansiedade, pânico e depressão. Só em 2018, há notícia de dois casos de suicídio entre estudantes da graduação da faculdade.

Diversas causas têm sido apontadas para o surgimento e agravamento dos quadros de sofrimento mental entre a comunidade acadêmica. Entre os estudantes, indica-se como principais fatores de risco a saída de contextos familiares para estudar em um local distante, a dificuldade em acompanhar a carga de estudos e avaliações, os questionamentos vocacionais e profissionais, a dificuldade de conciliar trabalho e estudos, a vivência de episódios de machismo, racismo e LGBTfobia dentro e fora dos espaços universitários, a violência sexual, a utilização desmedida de psicoativos para estudar e/ou de forma recreativa, o sentimento de isolamento e inadequação às exigências acadêmicas e institucionais da universidade.

Entre os estudantes de pós-graduação, há também as pressões de prazos para produção das dissertações e teses que não necessariamente abrangem o tempo orgânico dos diferentes temas de pesquisa, os bloqueios de escrita, as dificuldades de relacionamento com orientadores e grupos de pesquisa, a insuficiência de bolsas que permitiram dedicação integral à pós-graduação e a cobrança da produtividade.

Este é também um dos principais fatores de adoecimento das/os docentes, premidos pela necessidade de conduzir grupos de pesquisa e orientação, lecionar na graduação e na pós, assumir cargos de gestão e publicar produções originais, em um ambiente em que a competitividade e o produtivismo em muitos casos desestimulam a convivência harmoniosa entre pares. As condições profissionais em franca deterioração na USP, com os sucessivos programas de demissão voluntária e o consequente acúmulo de tarefas nas mãos dos funcionários, agravam este cenário.

Institucionalmente, as questões de saúde mental da comunidade acadêmica têm sido pouco enfrentadas e os equipamentos de acolhimento e atenção à saúde estão em franco desmonte. O Hospital Universitário, que dispõe de atendimento psiquiátrico ambulatorial, sofreu um enorme impacto com demissões a partir de 2014. Em 2017, o pronto-socorro infantil foi fechado e o pronto-socorro adulto passou a atender apenas emergências. O déficit de médicos tornou muito difícil a marcação de consultas, aumentando a vulnerabilidade da comunidade dentro e fora dos muros da USP. O Instituto de Psicologia  tem oferecido atendimentos emergenciais e grupos para o acolhimento, porém algumas dessas iniciativas estão em vias de fechar ou foram paralisadas. Além disso, professoras e professores, funcionárias e funcionários, a equipe de segurança do campus e a assistência social carecem de mais informação e capacitação para lidar com pessoas em sofrimento psíquico e episódios em que a manifestação desse sofrimento emerge e exige algum tipo de cuidado.

E, apesar da depressão e suicídio na vida acadêmica terem se tornado tema recorrente de reportagens e estudos, há ainda muito estigma e silenciamento acerca dessas questões. Sem diálogo, tornam-se problemas individualizados, desconectados dos contextos que os causam e enfrentados de forma precária por quem já está mais vulnerabilizado.

Em resumo, diante da profusão de fatores de risco para o sofrimento mental, é preciso ampliar os fatores de proteção existentes, identificando e suprindo suas lacunas e, criativamente, encontrando boas práticas de acolhimento, cuidado e bem-viver dentro da universidade.

Esta é a proposta do Setembro Amarelo FFLCH 2018 - ampliado e estendido. A partir de uma iniciativa do Coletivo Neurodivergente Nise da Silveira - CONEU, membros da comunidade da FFLCH se reuniram para pensar uma programação extensa, capaz de nos trazer esclarecimentos e subsídios para ações perenes em nossa faculdade. Ao longo de várias semanas, receberemos profissionais de saúde mental, pesquisadores, membros de nossa comunidade e oficineiras/os para examinar e debater os muitos aspectos do sofrimento psíquico contemporâneo, experimentando iniciativas diversas que possam prover as ferramentas necessárias para enfrentá-lo no âmbito de nossa Faculdade.

Após demasiado tempo tapando o sol com a peneira, é hora de fazermos os laços do Setembro Amarelo trazerem esclarecimento e revigoramento de nossas relações.